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Técnicas não indianas comparáveis à yoga

 

Derviches e Sufis iranianos

(Do livro “A Ioga” de Paul Masson-Oursel, traduzido do frances por Pérola de Carvalho, Edições Saber Atual , capítulo IV, 1956)

 derviches O Irã teve os seus derviches assim como a Índia, os seus iogues. Os derviches girantes são místicos do Irã muçulmanizado. Esse velho domínio ariano foi islamizado quase logo após a morte do Profeta; enquanto que o Indostão e o Dekkan foram invadidos – sem sofrer uma conversão, nove séculos mais tarde. O paradoxo então foi o de procurar acesso a uma mentalidade transcendente não no recolhimento silencioso e imóvel do mista em seu fôro interior, mas num redemoinho sempre mais e mais precipitado. Trata-se de superar a consciência por frenética rotação. Espécie de embriaguês obtida por torvelinho. A consciência se recusa a pensar segundo a mentalidade empírica dita normal; exulta, enlouquece e o corpo se abate, prêsa de uma crise nervosa. Essa procura de um excepcional gabarito de consciência, estonteante e delirante, não é mais que o estímulo produzido por absorção de um excitante. Lévy-Bruhl, há tempos, assinalou em mais de uma civilização “primitiva” esforços semelhantes para realizar coletivamente alguma mentalidade paranormal. Os ritmos frenéticos têm a sua magia. Todavia esse apelo a um desvairamento nervoso da consciência tanto individual quanto coletiva nada tem de comum com a Ioga. Faz a consciência participar de um delírio fisiológico, enquanto que a disciplina do iogue, pelo contrário, estende incrivelmente o domínio da vida orgânica. A consciência do derviche soçobra na queda do corpo inteiro. O frenesi nos gestos pausados e precipitados realiza apenas por assim dizer os movimentos de uma bússola endoidecida; o contrário justamente do plácido e metódico autodomínio que possibilita ao iogue a exploração metódica, encarniçada das suas funções, a marcação dos seus recursos, a extensão ilimitada das suas eficiências. Interpretado à maneira indiana o caso do derviche seria uma anti-Ioga, desfalecimento querido na confusa agitação do samsara: justamente o contrário do esforço para apaziguamento (shanti), para a salvação definitiva, concebida “no limite”: o nirvana. Se nessa circunstância o europeu se engana é porque desconhece as garantias, as seguranças com que se protege o iogue no seu lúcido heroísmo que é inteiramente o oposto de uma embriaguez. Evitemos confundir o esforço que visa um completo domínio com a técnica do completo abandono. Os artifícios de “êxtase” (no sentido próprio da palavra) obtêm uma renúncia preguiçosa; os recursos de “instase”, pelo contrário, são árduos mas progressivos para além de qualquer limite que se possa prejulgar. O Sufismo iraniano é o contrário mesmo de embriaguez ou loucura: uma mística do amor divino. Completo devotamento a Deus; não como cadáver, mas como dasa, escravo; supondo-se que escravidão signifique renúncia alegre de si próprio, absoluto entusiasmo para com o absoluto. Recomendamos para a compreensão o Sufismo não somente tradicional mas relativamente antigo o sólido estudo fornecido por K. M. Jamil[1], erudito paquistanês, sobre o grande místico Rumi (nascido em 1207 em Balkh). Obras principais: Mathnawi, Divan. Rumi não é desses muçulmanos que exageram a influência grega sobre os sectários do Profeta; é exclusivamente ao Islã que recorre o devoto do Amor absoluto. O valor do eu se reduz a zero; dando morte a si próprio, o sufi vive em Deus; Malebranche e Spinoza foram os europeus que se valeram de uma atitude análoga. Antes de Jamil, Nicholson era o exegeta mais competente sobre a obra de Rumi, pois precisava a filiação à qual este se prende: não a ariana, persa ou indiana, mas a semítica (Egito, Síria, Arábia). O mista muçulmano aprecia a vida, enquanto que o indiano quer pesquisar sua estrutura para evitar tornar-se vítima dela, e para, se possível, dominá-la. Não esqueçamos de assinalar o Tahkik-i Hind, obra na qual o grande muçulmano Beruni traduziu as Ioga sutras de Patañjali. Obra do século XI, esforço para apresentar objetivamente o conteúdo da Ioga clássica ao povo do Islã sem alterar o enunciado com preconceitos muçulmanos. Loius Gardet na Revue thomiste (1950) precisou a espécie de êxtase que se encontra nos sufis desde o século X, em particular com Kalabadhi (falecido em 995). O wajd, “choque mental” (Massignon), o wujud, “existencialização”, isto é, posição fora das suas causas; ek-stases que realizam a criação por Deus, eis a mola mental característica do seu comportamento. “A audição dos corações e a sua observação”, uma “chama que nasce no íntimo do ser”; é passageira, ao passo que a gnose é estável. “Quando Deus está presente desaparece o êxtase… O êxtase só pode atingir formas perecíveis e ele próprio se apaga no instante em que a visão começa”. Mas Hallaj afirma a existência de uma união metamorfoseante no amor e pelo amor, união não mais aniquiladora: Os estudos de êxtase divino são inteiramente provoca- dos por Deus, embora a sagacidade dos mestres renuncie a compreendê-la.  O êxtase é uma incitação, e depois um olhar que cresce e flameja nas consciências.             Quando Deus vem habitá-lo assim, a consciência dobra                         de acuidade e então três fases se oferecem aos videntes:             Aquela em que a consciência, ainda exterior à essên- cia do êxtase, permanece como espectadora espantada;             Aquela em que a ligadura no ápice da consciência se realiza; e então (aquela em que) se volta para                         uma Face cujo olhar a subtrai a todo e qualquer                         outro espetáculo.

Hesicasma e Ioga

 

megaloschema

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            Os monges cristãos do monte Atos manifestaram esforços ascéticos mais próximos à Ioga do que os derviches com a sua busca de desfalecimento. Sobretudo entre os séculos XI e XIV, mesmo na época em que o Shivaismo tântrico tanto impulso tomava na Índia central e meridional. Tratar-se-á de uma Ioga cristã? Aí está uma fórmula sedutora, se bem que não se possa tomá-la ao pé da letra. Por quê? Porque o cristianismo não admite essa transmigração, samsara, que a mística indiana quer eludir. Porque a tarefa do cristão não é a de redimir-se em relação ao pecado original, mas acolher a salvação que lhe traz o Salvador. Houve bhaktas entre os nossos ancestrais: os pietistas à maneira de Fénelon; neles, é o próprio Deus quem se afirma, coincidindo Filho com Pai. Mas que debilidade sugere essa teologia fiel! Felizmente a ascensão no amor divino afasta-se bastante dessa sensaboria em santa Tereza e Juan de la Cruz. Ninguém merece a graça. A salvação se obtém pela fé, não há dúvida; mas pelas obras? Essas obras que a consciência indiana, unanimemente, considera escravizantes? Para ela, realmente, a libertação é o contrário da obra. Os monges do Atos são gregos. Como podem eles ser cristãos? Os cristãos modernos estão habituados pela lembrança da escolástica a esta persuasão: a possibilidade de ser aristotélico e fiel a Cristo. Mas Platão se escolasticiza menos do que Aristóteles; procura-se Platão em Plotino? O paganismo de Platão não é negável. – Foi superado, sem dúvida, pela ascese do Atos, que se denomina hesicasta[2], a qual santifica as duas primeiras faculdades humanas admitidas por Platão: o …, pensamento; o …, coração; exclui a terceira, …, concupiscência, pelo treinamento monacal. O emprego desse vocabulário platônico difere inteiramente de como é feito no platonismo. A vida religiosa exige que o pensamento se submeta ao amor divino, e portanto ao “coração”: preceito contrário ao da sabedoria média. Isto supõe evidentemente que alma e corpo sejam dois aspectos de um mesmo vir-a-ser. Nada há de absoluto ou de imortal no cristão; sua salvação depende do seu comportamento. Portanto, uma ontologia antiga foi substituída por uma técnica espiritualizante; nada esperar da graça, mas praticar um ascetismo assíduo; esforço totalmente paralelo ao do tantrismo indiano, cada vez menos especulativo, cada vez mais pragmatista; operando na carne viva ao invés de especular sobre o eterno. Esses dois empreendimentos enquadram simetricamente os mais religiosos meios da Eurásia: Grécia cristianizada, Semitas judeus e muçulmanos, Irã zoroástrico e Mesopotâmia, em suma uma compacta civilização indiana. Nenhuma seção da humanidade se compreende por si mesma. Deixemos de nos iludir por ilusões demasiado tenazes: a pretendida distinção entre Europa e Ásia, a pretendida oposição entre corpo e alma, a pretendida incompatibilidade do ariano com o semítico. Acedamos em observar sobre o mapa, ainda que sumário, que Mediterrâneo e Mar Negro só diferem nos nomes, e que os antigos fundos marinhos se estendem até o Turquestão chinês: uma mesma latitude ao longo da mesma estrada, a da seda, desde a China até os Dardanelos. Sim, uma única estrada real e possível. Isso explica destinos comparáveis, muitas vezes complementares, quase sob uma mesma latitude. Se a inspeção do mapa não basta para abrir-nos os olhos, saibamos pela história dos mongóis que todas as velhas civilizações se escalonam de Irkutz a Bizâncio e ao longo do Danúbio, em direção ao Reno. Tinham razão os sofistas gregos e os sofistas chineses: tudo pertence, ao mesmo tempo, ao outro e ao próprio, e com certeza ao solidário. Visto que o helenismo se misturou ao indianismo com e após Alexandre, não seria inconcebível haver algo de indianismo na origem do hesicasma. A quase ubiquidade do Islã (Ásia inteira, África e Europa) seria bem mais incrível se, para melhor compreender, permanecêssemos suscetíveis de espanto. A circulação da respiração interessa aos monges do Atos: devem fazer retenção da respiração para sequestrar o intelecto no coração. Não são os cristãos que amam o filho de Deus? Refugiam-se pois, fielmente, no amor absoluto, ao passo que os iogues tântricos, reabsorvendo uma a uma as funções vitais, evadem-se pelo ápice do crânio numa libertação fisiológica: precisões comparáveis, visto que opostas.

Ioga e tao

 taoismo

            Nenhuma prática atestada pela antropologia assemelha-se tanto à Ioga quanto o taoismo chinês. Mas a dupla concorrência indianística e sinológica é em tudo e por tudo excepcional. A tão frutífera cooperação de Edouard Chavannes e de Sylvain Lévi teria podido nos quinze primeiros anos do século XX, estabelecer de golpe, a esse respeito, as necessárias precisões, mas outras tarefas, mais árduas açambarcaram o seu esforço comum e que, desgraçadamente, tão pouco durou. Índia e China, as duas sozinhas, constituem aproximadamente os dois terços da humanidade. Estão muito separadas, mas também reunidas, pelo Tibete onde a Ioga é “autêntica”, e o mundo mongol sempre pesou sobre ambas. A expansão do budismo para a Ásia mais oriental tornou ali conhecido o que pode obter ou sugerir o ascetismo da Ioga; expressão não menos marítima do que continental. O taoismo, ao contrário, foi apenas apontado aos hindus, embora o uso do vocabulário taóico interviesse algumas vezes na tradução para o chinês dos textos indianos ou tibetanos. Explicar a vida pela circulação da respiração, governá-la, portanto, por uma ginástica respiratória, tal é em resumo a pretensão comum dos iogues e dos taoístas, como foi este também o programa dos solitários do Atos; mas as condições diferem de acordo com os meios. O hesicasma herda uma civilização na qual, através de Platão, de Aristóteles, de Plotino, dos Estóicos, não cessou de variar o uso do termo ……; por mais cristão que seja, um monge bizantino não poderia pensar como Santo Agostinho ou como um papa romano. Como se poderia apresentar nas mesmas condições a disciplina da respiração em meios tão diferentes como o são os da Índia e da China? A Índia é um país tríplice Pendjab, Ganges e península; este conjunto é fechado: imensa ratoeira da qual, uma vez dentro, ninguém escapa. A China é dupla por suas bacias fluviais, una por sua continuidade que vai desde a Mandchúria até Tonquim; tão aberta e escancarada quanto lhe é possível ao norte, sempre capaz de ser invadida pelos mongóis, mesmo com a sua Grande Muralha; o afluxo regular dos soldados veteranos, aliás lhe é tão indispensável quanto perigoso. Este país é essencialmente guerreiro pelo menos intermitentemente. Maltratado com frenesi pela política em todas as épocas, ao passo que é só a partir de Gandhi que a Índia se situa na concorrência e no equilíbrio do mundo. O horizonte dos indivíduos está encerrado no dever de casta e a proliferação ilimitada das castas interdita, mesmo aos soberanos, que de direito só podem ser nobres, e que foram muitas vezes escravos, toda ação governamental. Não há nenhuma possibilidade de opinião pública. Um regime julgado de antemão como perfeito, eterno, absoluto e como tal respeitado por agrupamentos cada um dos quais se fixa na sua própria lei, o dever de casta (svadharma), é ordem, mas inconsciente falha de toda crítica, de toda iniciativa, como a que reina entre as abelhas e formigas. Certamente a possibilidade de fundar seitas, tão contingentes e acidentais quanto imutáveis eram as castas, abria para a sociedade o caminho da inovação e da iniciativa, em dharmas particulares e arbitrários; mas que salto no desconhecido era essa deserção da casta! Só iogues manifestam tal temeridade: Jina, Buda, outros menos ilustres, e uma enorme quantidade de desconhecidos em meio à confusão dos lugares e das épocas. A seita é um exutório, não uma instituição; longe de reformá-la, ela foge à sociedade.   O meio chinês é sempre agitado por abalos políticos. Enquanto que o iogue se coloca à margem da sociedade, frequentemente de toda sociedade, o taoísmo julga, e muito cruamente, todo poder, toda autoridade. Aborrece-se ou escarnece; pode suscitar reações coletivas. Insiste sobre a fraqueza dos fortes, sobre a força dos fracos. Brinca com seu próprio espírito e brinca com o espírito alheio. Dialético e sofista (se nos permitem falar grego), como difere esse homem do iogue! Este só quer agir sobre si mesmo, ignora os outros; zombar dos costumes humanos parecer-lhe-ia futilidade. Que erro cometeríamos se admitíssemos que ele pensa! O primeiro preceito da Ioga é pôr termo ao desenvolvimento do pensamento. O pensamento chinês, na antiguidade, comporta dois “pólos”: a natureza segundo Lao (quer seja esse primeiro taoísmo mítico ou não), a civilização segundo Confúcio; nada há de absurdo em que se interprete essa oposição como análoga à de Rousseau e Voltaire no nosso século XVIII, pois muito poucos meios humanos mostraram um espírito tão aberto e diverso, tão avisado na agilidade crítica, quanto os “cem filósofos” da velha China. Acrescentamos que Li e Tchuang foram na antiguidade taoísta nomes tão consideráveis quanto Fichte e Hegel no esplendor do romantismo germânico. O apogeu da civilização chinesa é, sob todos os aspectos, anterior à nossa era. Houve épocas incomparáveis em outros lugares que não a Atenas de Péricles ou a Toscana do século XV. A história só tem sentido quando completa, e só se encontrará o reflexo do pensamento humano numa philosophia universalis. Já era isto manifesto bem antes que as distâncias parecessem reduzir-se incrivelmente em consequência deste fato nosso contemporâneo, a aceleração sempre mais impulsionada das comunicações sobre o nosso planeta. Existiu fé sem ascetismo, e ascetismo sem fé. Este último caso é manifesto no Iogue puro e simples, nem piedoso nem pensante, mas resolvido a possuir-se a si próprio adquirindo a influência sobre as suas funções vitais; o taoísta é um iogue sarcástico, irônico e revoltado, a quem a contradição estimula ao invés de acabrunhar: o paradoxo é o seu critério de verdade, da mesma forma que superar a contradição é o critério de verdade para Hegel. Zomba da lógica; já o iogue ignora-a, assim como ignora a sociedade. Haverá coisa mais curiosa do que essa para franceses habituados como foram a respeitar o social desde Comte e o racional desde Descartes, como se o Discours sur l´esprit positif completasse o Discours de La méthode! Resumamos. O iogue não se interessa nem pela natureza nem pela sociedade. Seu mundo é seu corpo. Não emite nem postula qualquer juízo. O taoísta, pelo contrário, alimenta seu vigor com elementos naturais. Empoleirado numa rocha, domina a corrente que turbilhona lá embaixo e corre para profundezas ainda maiores; vive na claridade, meditando sobre a modéstia absoluta da água, a insolência do cume, a discrição das fontes puras: chan chuei. Orgulho e humildade. Que faz este asceta que assim domina o abismo, quando algum camponês, lá embaixo, passa por uma ponte montado num burro? Crispado num riso de escárnio, põe-se em uníssono com os cimos e desafia a vertigem. É o nosso leitor ingênuo ou precavido? Na primeira hipótese, admirará a arte, o “pitoresco” – no entanto, acha-se em presença de um esquema místico. O interesse por essa “paisagem” é ilusão de europeu: os detalhes manifestam uma significação doutrinal. Não se trata, muito menos, dos devaneios de algum passeante solitário, embora J.-J. Rousseau ateste verdadeiramente um humor taoísta! mas toque de chamada para um culto determinado, nem mais nem menos do que para algum pintor italiano ou espanhol a figuração do Calvário. Aliás um texto acompanha normalmente a efígie. Assim ilustrado, evitaremos a confusão. O iogue é um hindu que se liberta da transmigração (esse espantalho, essa obsessão da Índia), adquirindo por comportamento plena influência sobre a vida: heroico explorador da biologia vivida. O taoísmo é um chinês insociável que realiza sua autonomia domando funções vitais, e portanto respiratórias, e purificando seu juízo; que se põe em uníssono com a natureza aprovada em seus aspectos opostos mas complementares. Irritado contra as prenoções humanas, busca a inteligência na ironia e no paradoxo, a eficiência na alquimia e na magia, deixando para os confucianos o senso comum e a formação dos funcionários, num Estado que perdeu sua aristocracia. A influência que o taoísta adquire sobre a vida, ele a deve a uma tecnologia tanto quanto a um comportamento, a drogas como a meditações. É um rival da Ioga búdica, isto é, incluída no budismo, mais do que da Ioga simples ou integral; por isso mesmo exerce uma eficiência política ao mesmo tempo que mágica.

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                Os verdadeiros conhecedores desse assunto são raros no Ocidente, embora cada geração, desde o fim do século XIX, tenha dado à França – para falar nela apenas – um ou vários sinólogos eminentes. Pelliot sabia tudo, até mesmo os mais modestos dialetos, e sua erudição foi inigualável, mas não se dignou a “produzir”. Granet, virtuose na interpretação das origens chinesas, não se dava a consagrar sua carreira à interpretação do pensamento chinês antigo e depois medieval[3]. Tentemos não falsear o sentido que dá à palavra tao. Resolvamos chamá-lo de o Originário ou o Um. Dele resulta o Dois, a saber o yin (par); e depois o Três: o yang (ímpar). O yin é o tao no estado de repouso; o yang seu estado de movimento. Sucessão, alternância desses contrários, aí está a mola do que os ocidentais chamam “mecânica universal”, regra do vir-a-ser, essa “transformação”, yi, constitutiva de todo o real e de todo o pensável; que ainda por cima constitui, entre os confucianos, o objeto do Yi king. No entanto, enquanto o confuciano busca aí um meio de controle para saber se o soberano está de acordo com o Céu, o taoísta acha na identificação com o princípio das transformações um meio indireto para coincidir com a natureza, captar-lhe as energias, fazê-la produzir uma supernatureza[4]. Esta física, explicação dos “fenômenos”, explica também como se adquire uma vida espiritual. Por esse meio indireto aproxima-se ela, de uma certa forma, da ascese dos iogues. Pois a eficiência, como a felicidade, obtém-se por reabsorção no não-agir (wu wei) do tao, aquisição da vacuidade; o asceta indiano retrai suas funções sensoriais no coração e esvazia seu espírito por uma ginástica respiratória análoga à do ascetismo chinês. O taoísmo na China como a Ioga na Índia, repudiou a religião tradicional e zelou ardentemente pelo absoluto. Última observação: surpreendemo-nos menos do que o grande sinólogo ante o fato de que o erudito moderno Hu Che tenha apresentado a doutrina de Tchuang tseu como um sistema de lógica (pág. 492): trata-se de uma lógica hegeliana, não aristotélica.

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                Encaremos agora, depois do taoísmo antigo, o taoísmo da Idade Média, menos metafísico mas rival do budismo, concebido, portanto, numa ambiência de terminologia indiana. Todo europeu culto deveria ser informado sobre esse fato tão importante: a tradução dos textos búdicos indianos ou tibetanos para o chinês – ulteriormente para o idioma japonês, obra de colaboração entre homens doutos da Índia e do Extremo Oriente – foi um esforço de “humanismo” tão notável quanto esse humanismo do “Renascimento” no qual o europeu compreendeu o que devia à antiguidade greco-latina e semítica. Mas não foi apenas o budismo: foi o próprio taoísmo, apesar das suas origens propriamente chinesas. Pois “para a constituição do corpo imortal o taoísta utiliza drogas preparadas à base de plantas e sobretudo de produtos minerais, particularmente de cinábrio e de outros sais de mercúrio. Para obter a Longa-Vida, a Índia desenvolveu igualmente todo um ramo da sua medicina vegetal, e constituiu sobretudo toda uma química dos corpos “mercuriais”. Ao Dr. Filliozat cabe o mérito de haver precisado este fato importante, numa conferência realizada a 16 de maio de 1949, em Hanoi (“Dân Viêt Nam”, agosto de 1949). Com isso confirmou e ampliou o alcance de um trabalho que Henri Maspero, em quatro conferências queria apresentar à Universidade de Montpellier em 1941 (Mélanges posthumes, t. I). Pode-se dizer, de um modo geral, que o taoísmo antigo era metafísico, e que o da Idade Média foi mágico. Há mais verdade em obsevar que Tchuang tseu reina com esplendor sobre essas duas épocas: “Lamento as pessoas do mundo que pensam que os processos para nutrir o corpo bastam para fazer durar a vida eternamente. Nutrir o corpo não basta.” Mas aqueles que lamentavam pularam nos séculos ulteriores; admiram-se com o fato de que a vida eterna requer processos para eternizar o corpo. “Nutrir o princípio vital” e “nutrir-se de sopro”: fórmulas complementares.

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                Que concluir deste confronto Índia-China, isto é, Ioga e tao? Observam-se muitas intenções análogas: a salvação buscada em disciplinas vitais, e não “espirituais”. Na Índia é a respiração, na China, a nutrição que prepondera. Mas o budismo implantou entre os amarelos a Ioga gangética, a Ioga da antiguidade. Na Idade Média, é a Ioga dos tantras que caminha para o Extremo Oriente seja em direção a Singapura, seja visando a Mandchúria e a Coréia. Tenhamos cuidado para não ignorar que todas essas exportações vão atingir a Ásia insular, o arquipélago japonês, o arquipélago oceânico até Bali. Não esqueçamos de que na Indochina vivem lado a lado a Ioga cambodgiana e o tao anamita. As complexidades da China filosófica refletem sob mais de um aspecto a permeabilidade ou irredutibilidade especificada da Ioga e do tao. O confucionismo muitas vezes se impregnou de taoísmo; o budismo dos amarelos conservou seu intrínseco coeficiente de Ioga. Mas os ângulos se arredondam na inevitável incompreensão e no sincretismo. A China recebe suas águas do Tibete, onde perdura uma estritíssima Ioga. Por que não terá ela recebido por ali a Ioga transmitida diretamente? Porque a civilização chinesa predominante fez-se pelo Norte, lado pelo qual, repitamos, se abre escancaradamente para os mandchus e para os mongóis; porque a velha China, era o vale do Wei e a bacia do Rio Amarelo, não a do Rio Azul.

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                Sobretudo não façamos confusão, sob o pretexto de compreender. O europeu não está imediatamente apto para a assimilação dos costumes asiáticos. O não-agir, wu wei dos taoístas nada tem de comum com a reprovação dos atos no budismo. Visa esta última evitar a escravidão por acumulação de karman (resíduos da ação). O não-agir, superior a toda ação, é poder supremo. Nada se faria sem o tao sempre não-agente. Esse adágio é decisivo; observemos sua congruência com essa convicção de Platão, de Aristóteles e de Plotino: tudo o que vem a ser exprime a eternidade do ser. A pura metafísica não é patrimônio exclusivo da Grécia clássica; foi o que há tempos pusemos em relevo na nossa obra Le fait métaphysique[5].


[1] Da Osmania University (Hyderabad): Introduction to Rumi’s thought, 1950.
[2] A palavra …. nada tem de comum com o latim castus, “casto”. Significa paz e repouso; quietude, digamos.
[3] La Chine antique, Paris, Boccard, 1927. – I. Les religions chinoises; II. Le taoïsme, Publications du Musée Guimet, 1950; Mélanges posthumes apresentadas  por P. DEMIÉVILLE. É preciso também procurar na obra de FORKE uma sólida documentação média sobre o conjunto do passado chinês.
[4]  Cf. nossa Philosophie em Orient, tomo suplementar da Hist. de la Phil. de BRÉHIER (P. U. de France, 1948) págs. 140 a 145.
[5] Presses Universitaires de France.
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