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Tantra

 

Maria Helena de Bastos Freire

A palavra Tantra foi usada em vários sentidos no sânscrito. Conota um sistema e se refere a um Śastra (texto, escritura).
M. M. H. P. Śastri afirma: “A palavra Tantra significa diminuição, abreviação, isto é, reduzir para algo como formas algébricas de mantras ou de fórmulas que de certa maneira redundariam em sílabas dispersas”.
Mantra é a alma do Tantra Śastra, mas por si só não constitui todo o sistema.
Parte da literatura canônica desta Escola, o Kāmikāgama define Tantra como um sistema de texto que promove assuntos profundos relativos a Tattva (realidade ou categoria de existência cósmica) e de mantra.
M. P. Pandit, grande estudioso do assunto, faz a seguinte colocação: “O Tantra é o maior desenvolvimento na evolução do pensamento espiritual indiano posto que ele representa uma tentativa de reconciliar os pontos de conflito aparentes entre as diferentes escolas filosóficas que surgiram após a era dos épicos. O Tantra tenta sintetizar o Monismo Advaita com o Dualismo do Saṃkhyā, enriquecido com Jñāna e com o rasa do Bhakti, une a Natureza com o Senhor na individualidade do ser humano, harmoniza as demandas do Espírito com os limites da Matéria. Ele recupera a herança perdida dos Vedas que enfatiza a comunhão entre o homem, Natureza e Deus e a igualdade de status entre a Mãe Terra e o Pai Céu.
O princípio do Tantra é não rejeitar nada que Deus tenha criado, de utilizar todos os meios para elevar a consciência humana ao plano divino. Diferentemente dos sistemas que o antecederam, o tantrismo é fortemente racional em seu enfoque; ele não exige a fé antecipada. É uma ciência que se auto verifica no desenvolvimento das energias naturais e seus termos super-naturais levando a desfrute cósmico da vida em consciência espiritual. Em uma palavra é uma vida de Mukti (liberado) e Bhukti (prazer) no sentido mais elevado“.
Por volta do VI A.D. uma onda de genialidade começou a varrer a Índia, uma onda que ainda não se assentou.
Essa onda que tomou a forma de um corpo de praticas e pensamentos religiosos foi interpretada de inúmeras maneiras tanto por indianos como por ocidentais.
O que alguns denominaram de loucura e mesmo abominações, outros julgaram ser um caminho para o sublime ou para o êxtase. Tais foram as avaliações desse fenômeno, que durante mais de 14 séculos nunca cessou de entusiasmar e confundir. Os indianos que inovaram esse corpo de teoria e prática chamaram-no “Tantra”, a “urdidura” (da realidade).
A palavra tem um pedigree muito antigo. Sua raiz TAN significa estender como se faria com um fio num tear.
O Tantra em linguagem védica é um corpo (tanu) a ser sacrificado num altar dentro da estrutura de um ritual. As pessoas que seguiam esse caminho eram denominadas de tantricas e suas obras transmitidas por via oral ou por escrita.
O tantrismo indiano não emergiu do vazio nas suas diferentes realidades hindu, budista e jainista. Foi por um lado influenciado pela interação cultural com a China, Tibet, Ásia Central, Pérsia e Europa, interações que tiveram a Rota da Seda, rotas marítimas e portos de intercambio.
Bem mais importante, no entanto, foram as raízes originárias do país do tantrismo que não somente foram o início das mais antigas formas do hinduísmo como foram sua continuação apesar de algumas vezes diríamos tangenciais e heterodoxas.
Houve também uma reivindicação para ser considerado o V Veda, isso é, como uma revelação (śruti) a ser acrescida a dos IV Vedas tradicionais.
Mencionaram outro argumento importante referente a doutrina dos 4 Yugas (eras) do mundo. Afirmou-se então que os ritos e disciplinas que podiam ser pertinentes no Satya Yuga ou Kṛta Yuga (chamada era do ouro ou dos benefícios) não mais serviam aos homens das eras seguintes especialmente na atual, o sombrio Kali Yuga (era do ferro, sendo o ferro o menos valioso metal, época decadente).
Não seria portanto nem nos Vedas nem nos outros textos estritamente tradicionais que essa humanidade hodierna poderia encontrar os conhecimentos, a visão do mundo, ritos e práticas eficazes conducivas à libertação. Somente o Tantra e os Āgamas (conhecimento válido, pramāṇa) seriam eficazes e adequados para o nosso Kali Yuga.
Os homens estão divididos nos Tantras em três classes de temperamentos:
• Paśu (animal/rebanho) – onde tamas a qualidade da matéria (guṇa) predomina e na qual está preso por ataduras.
• Vīra (herói) – aqueles nas quais a qualidade ativa rajas (guṇa) predomina.
• Divya – aqueles nos quais a qualidade do puro sattva (guṇa) predomina.
O culto que deve ser prestado varia e é adaptado ao temperamento daquele que o pratica.
Não deve ser esquecido que outra assertiva dos Tantras é de que aos seus praticantes é concedido o prazer e a salvação. É o “BHUKTIMUKTIKARĀṆICA”. No Mahānirvāṇa Tantra, cap. i, versos 50, 51; MUṆḌAMĀLĀ TANTRA, cap. ii Bhoga (prazer) é de 5 tipos – prazer advindo do som, do toque, da visão, do sabor e do aroma.
Esse prazer poderá ser obtido na terra ou nos céus transitórios de bhoga, que deve ser distinguido de “mukti” (liberação) sendo somente esse o estado que perdura.
Os românticos germânicos eram altamente entusiásticos a respeito do pensamento indiano e foi essa a razão pela qual os pandits daquele país apreciavam tanto a indologia germânica.
Citamos aqui o que H. V. Glasenapp escreveu:
“A noção de que o universo todo com a totalidade de seus fenômenos forma uma só unicidade, na qual até o menor elemento pode produzir efeito sobre o maior, pois que fios secretos conectam com os menores itens com a eterna base fundamento de suporte do mundo, sendo o próprio fundamento de toda filosofia tantrica”.
Segundo Mircea Eliade o grande ensinamento que a Índia forneceu a ele foi o do sentido do símbolo. Lá assistiu numa aldeia mulheres de todas as idades adornando com flores um liṇga que interpretou a primeira vista como sendo um símbolo fálico. Era de pedra e bastante grande.
Compreendeu então a outra perspectiva e passou a enxergar no liṇga “o símbolo”. O liṇga é o mistério da vida, da criatividade, da fertilidade que se manifesta em todos os níveis cósmicos. Essa epifania da vida era Śiva e não o membro como tal. Essa possibilidade de ser religiosamente tocado pela imagem e pelo símbolo, revelou a ele, todo um mundo de valores espirituais. A primeira vista o liṇga parece mesmo um símbolo fálico. A ereção se dá por causa do feminino a Śakti presente. O Tantra diz: “Śiva sem Śakti não passa de um cadáver (śava). A ereção comprova o poder feminino”.
Para o tantrico a percepção do princípio cósmico assim simbolizado faz parte da sua realidade diária. O universo nasce do desejo como o de todo ser vivo.
Nos ritos sexuais do Tantra tudo é feito para despertar o desejo, para criar situações erotizantes para chegar ao êxtase pela união sacralizada. Aliás ela só se torna espiritual se seu caráter sagrado, divino for percebido.
Para o Tantra todo o prazer é de ordem espiritual. Tudo isso pressupõe uma visão diferente da comum. Controlar o sexo ritualizando e sublimando-o faz parte dessa doutrina que mal compreendida pelos ocidentais passou no período vitoriano a influenciar os indianos que acabaram denegrindo o tantrismo pela incompreensão dessa prática, combatida pela religião anglicana presente no país colonizado, sempre na tentativa de converter seus habitantes.
Além da importância dos mitos e da presença deles na Tradição indiana sobretudo nos Tantras outro instrumental dessa prática é o mantra sendo uma de suas definições: O instrumento pelo qual começamos a perceber as divindades no corpo.
Assim o corpo como o cosmos, pode ser encarado como uma unidade separada de manifestação composta de muitas partes diferentes, todas inter-relacionadas pela presença do divino em si mesmo.
Na tradição Kaula uma linhagem das mais importantes e expressivas do tantrismo não se injuria nem se tortura o corpo para atingir a iluminação, ao contrário a Tradição venera o corpo como um vaso, um recipiente do Supremo. Na verdade o instrumento central para iluminação é o corpo. A partir daí e do trabalho sobre ele começa a divinização. Esse aspecto transcendental quando exaltado leva a auto-experiência de que o cosmos se tornou o próprio corpo.
O praticante não mais preso pelo corpo físico finito apropriou-se e trouxe sob controle todo o Kula, isso é toda a realidade total manifestada. O termo Kula começando do sentido básico de grupo passa a significar Cosmos Encarnado que abarca toda a extensão da realidade manifesta. Um acréscimo a esse significado de grupo leva a noção da família espiritual que pratica os métodos corporais que conduzem à iluminação. O sentido de grupo como família nos conduz ao segundo significado que caracteriza a tradição Kaula, isso é o conceito de prática grupal no qual o mesmo é iniciado ficando restrito ao grupo. Esse passa então a constituir uma espécie de família mística na qual o guru funciona como pai espiritual e sua esposa desempenha o papel de mãe.
Não poderíamos nessa introdução ao Tantra deixar de mencionar o Śaivismo dado a um número de escolas que cobrem uma extensa área de pontos de vista doutrinais e de enfoques práticos tendo como denominador comum de todas elas o culto da Realidade Transcendental, Śiva.
São elas: Kāpālikas
Kālāmukha
Pāśupatā
Pratyābhijña
Śaiva Siddhānta
Vīra-Śaivismo ou Lingāyate
Não se pode falar em Śiva no tantrismo sem mencionar a Śakti (poder) sendo o princípio criativo da existência de aspecto feminino. Esse conceito de Śiva Śakti pretende explicar como a indiferenciada singular realidade reproduz o multidimensional cosmos nas suas infinitas formas. O princípio estático personificado como Śiva é por si só incapaz da criação. Śiva sem Śakti é identificado a um cadáver (śava).
Lembrando a metáfora poética do Śiva-Purāna (VII.2.4.10) “Assim como a lua não brilha sem sua luz assim também Śiva não brilha sem o princípio da Śakti”.
Existem inúmeros exemplos, citações de textos, metáforas para explicações sobre Śiva e Śakti mas voltando ao Śaivismo advertimos que estamos entrando num terreno bastante controvertido pois que outras Escolas também disputam sua maior importância nesse cenário. Muitas das escolas Kaula indicam outras como a Krama e a Trika. As tradições orais que somente recentemente estão sendo reveladas complicam mais ainda um esquema do que se tem no momento.
Citamos como exemplo que os ensinamentos e tradições do Śaivismo do Kāśmīra permaneceram ocultos nos últimos 800 anos. Swami Lakṣmanjoo, que tivemos o prazer de conhecer pessoalmente antes do seu falecimento a duas décadas, era considerado o maior mestre e santo dessa Tradição. E foi essa tradição oral que confere vida ao ensinamento que o teve como último depositário desse saber secreto, que por ele foi registrado na Fundação Kashmir Saivism Fellowship do Universal Shaiva Trust.
Outra tradição tantrica que nos foi dada a conhecer foi da AVADHŪTA ORDER OF THE GAUDYA SCHOOL OF ŚAKTAS no Estado de Bengala, através do Mestre também falecido KŪLĀCĀRYA ŚRIMAT VIRĀNANDA GIRI (aliás Dr. Nando Lall Kundu) dentro da linha Śakta.
A palavra Kula que significa totalidade fecha nossas considerações pelo Tantra lembrando que ela totalidade Pūrṇa (plenitude) não significa que onde existe somente sabedoria não existe ignorância, ou então onde só existe ignorância não existe sabedoria. Pūrṇa é o estado onde a sabedoria e a ignorância existem juntas; quando há sabedoria há ignorância e quando há ignorância há sabedoria. Ambas, sabedoria e ignorância são digeridas na sua totalidade; nada é excluído.

 

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